O governo Tarcísio de Freitas publicou o Decreto 68.189, de 14/12/2023, com o declarado objetivo de organizar a oferta de educação profissional técnica, pública e gratuita para os estudantes da rede estadual de ensino. A medida, entabulada desde o início do atual governo pelo secretário de Educação, Renato Feder, prevê a instituição de uma verdadeira ‘rede paralela’ de ensino técnico, à margem do Centro Paula Souza, que é o órgão estadual paulista responsável por essa modalidade de ensino há mais de 50 anos, com notória qualidade e respeito da sociedade. A ‘rede paralela’ – sem investimentos, sem estrutura laboratorial e com ínfima contratação de professores habilitados – prevê o atendimento de 100 mil estudantes já em 2024. Trata-se de transformar um dos cinco itinerários formativos do “novo ensino médio”, o ensino técnico, em eixo central das escolas estaduais.
De acordo com o decreto 68.189/2023, as escolas da rede pública estadual poderão ofertar o itinerário de formação técnica e profissional aos estudantes do ensino médio mediante adesão ao programa, sem prejuízo dos seus cursos regulares e dos demais itinerários formativos.
De volta ao passado
A proposta de Tarcísio/Feder não tem nada de nova e guarda muita semelhança com um projeto implantado em 1971, no auge da ditadura militar. Em julho daquele ano, sob a alegação de que o país precisava formar técnicos para atender ao mercado de trabalho, o Congresso Nacional aprovou um projeto de lei determinando que o objetivo da formação no 2º grau, como se chamava esse nível de ensino à época, seria unicamente a habilitação profissional. O projeto havia sido encomendado pelo governo militar, presidido pelo general Emílio Médici, a um grupo de especialistas, que o produziram em tempo recorde de dois meses. Sancionado pelo presidente, o texto tornou-se a Lei 5.692/1971.
Para o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Luiz Antônio Cunha, autor de várias obras sobre ensino técnico-profissional, atender às “necessidades” do mercado não era o motivo central, como alegava o governo militar. “Os governos que sucederam o golpe de 1964 tinham como tônica a redução dos gastos governamentais com ensino. Para isso, era necessário reduzir a demanda de ensino superior, que crescia de forma intensa. O instrumento foi a profissionalização universal e compulsória de todo o 2º grau. A necessidade de mão de obra não foi a motivação, isso era ilusório”.
A história da malfadada reforma do ensino médio de 1971 está bem contada em artigo publicado na Agência Senado.
Os anos se passaram e a reforma mostrou-se um fracasso: as escolas não conseguiram se adequar da noite para o dia e a ampla maioria oferecia arremedos de cursos técnicos, sem laboratórios e professores preparados, com enxugamento radical da formação geral, a parte propedêutica. A aventura foi encerrada em 1982, com a aprovação de um novo projeto enviado pelo governo federal, naquele momento sob o comando do general João Batista Figueiredo, extinguindo a exigência da habilitação profissional.
Precarização do trabalho: professores temporários terceirizados e notório saber
Assim como em 1971, o projeto de Tarcísio/Feder, agora sacramentado pelo Decreto 68.189/2023, ignora o fato de que a esmagadora maioria das escolas da rede estadual paulista carece de estrutura física e laboratorial adequada.
Em parecer sobre o projeto, divulgado em maio/2023, o Conselho Estadual de Educação (CEE) alertou a Seduc de que a criação de novas escolas técnicas precisa levar em conta, também, a escassez de professores qualificados para as modalidades. "A contratação e formação de professores demandam tempo, recursos e uma infraestrutura adequada, fatores que devem ser levados em conta ao planejar a expansão do ensino técnico”, diz o documento.
A Seduc ignorou o alerta e explicou que, prioritariamente, serão escolhidos docentes que já atuam na rede, desde que atendam aos pré-requisitos de formação na área dos cursos técnicos. Já prevendo que este caminho suprirá uma pequena parte da demanda, informou que as vagas não preenchidas serão terceirizadas: uma empresa contratada pelo estado selecionará professores temporários. Também será possível a contratação de pessoal não docente, desde que com “notório saber”, conforme previsto na reforma do ensino médio.
Os docentes das “escolas técnicas próprias” passarão por formação também a cargo de “especialistas contratados” pela Seduc, com material igualmente terceirizado.
Os mercadores da educação – fornecedores de mão de obra, produtores de materiais de formação, agenciadores de especialistas – comemoram. Que grande filão se abre em São Paulo! As investidas de Feder no Paraná, à época em que foi secretário da educação, parecem fichinha diante do horizonte que surge no estado mais rico da federação.
Privatização avança na educação pública paulista
Beneficiar os mercadores da educação, aliás, é quase uma obsessão para Tarcísio/Feder. Consulta pública lançada em novembro prevê a criação de uma parceria público-privada (PPT) para a construção e gestão de 33 novas escolas da rede estadual de ensino. Elas seriam construídas e administradas pela iniciativa privada, ao longo de 25 anos, nas áreas de “operação, limpeza, manutenção, segurança e infraestrutura”, como mostra reportagem no Portal Metrópoles, de 16/11/2023.
A PPP prevê investimento de R$ 1,6 bilhão ao longo do período de concessão, sendo R$ 1,2 bilhão nos três primeiros anos. Esse valor (R$ 1,2 bilhão) corresponde a cerca de 40% do orçamento anual do Centro Paula Souza, com o detalhe que se destina à “administração” de menos de 10% do total de escolas da instituição.
Impactos do Decreto 68.189 no Centro
“O novo programa do governo Tarcísio pretende esvaziar as ETECs e FATECs, que já realizam educação profissional de alta qualidade no estado de São Paulo”, denuncia nota da Apeoesp sobre a publicação do Decreto 68.189/2023.
“Além de repetir a iniciativa da ditadura militar, que foi completamente desorganizadora da educação naquela época, outra consequência imediata será a redução de inscritos no vestibulinho do Centro Paula Souza, que é pago, enquanto na rede estadual o acesso é gratuito e imediato, sem provas e sem a exigência de número mínimo de inscritos”, analisa Silvia Elena de Lima, presidente do Sinteps.
“Tudo isso tende a gerar redução de salas e demissão de docentes”, conclui.
O Sinteps defende que, no Centro Paula Souza, haja regras iguais às existentes no âmbito do governo estadual: 20 alunos por turma, fim do vestibulinho e extinção das taxas (para vestibular/vestibulinho).
Esvaziamento das ETECs é meta histórica do projeto conservador no estado
Criado em 1969, o Centro Paula Souza recebeu ataques os mais diversos ao longo dos anos – como a reforma dos anos 90, durante o governo FHC –, sofreu e sofre com os investimentos insuficientes por parte do governo. As lutas de seus/suas trabalhadores/as e estudantes, como bem o site do Sinteps, no item “História”, freou muitos destes ataques e contribuiu para que a instituição fosse crescendo e se fortalecendo como exemplo de rede pública de educação profissional.
Graças ao empenho dos/das trabalhadores/as do Centro, as ETECs e FATECs são reconhecidas pela sociedade por sua excelência. Além de formar profissionais disputados no mercado de trabalho – nos níveis técnico e tecnológico – a inserção dos estudantes egressos das ETECs no ensino superior é impactante.
Mas isso não interessa aos governos conservadores que têm gerido o estado de São Paulo nas últimas décadas. Eles defendem um projeto político em que os filhos e as filhas dos trabalhadores não devem olhar para a formação superior – qualquer semelhança com a filosofia da ditadura militar não terá sido mera coincidência –, mas sim inserir-se no mercado de trabalho com funções medianas. E que a ciência e a tecnologia continuem sendo importadas dos grandes centros capitalistas.