A polêmica frase do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que propôs “aproveitar” a crise atual para “passar a boiada” na legislação ambiental, parece ter encantado o governador João Doria. Com o projeto de lei 529/2020, enviado em regime de urgência à Assembleia Legislativa, a pretexto de equilibrar as contas públicas, o governo paulista tenta passar um conjunto de medidas catastróficas para os serviços públicos, o funcionalismo, as universidades estaduais e a ciência.
Disposto em 69 páginas, o projeto junta “alhos com bugalhos” e abre o leque para um ataque em série: extingue 10 autarquias, fundações e empresas públicas, passando os serviços para empresas privadas, aumenta drasticamente as alíquotas de contribuição ao Iamspe e passa a cobrar dos dependentes, confisca as reservas financeiras das universidades estaduais paulistas e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), entre outros. Tramitando em ambiente semi-virtual, sem a presença de parte dos deputados em plenário, a boiada de Doria, que não só abriu as porteiras como também derrubou a cerca, pode passar rapidamente, a não ser que haja uma forte reação da sociedade.
Déficit previsto é menos da metade da renúncia fiscal de 2019
A justificativa para as medidas, conforme consta na apresentação do projeto, é equilibrar as contas paulistas frente à “grave situação fiscal que ora vivenciamos devido aos efeitos negativos da pandemia de Covid-19 sobre as receitas públicas”, que teria levado a uma previsão de déficit orçamentário da ordem de R$ 10,4 bilhões para o exercício de 2021.
Por ironia, o valor é menos do que a metade da renúncia fiscal praticada pelo governo estadual no ano passado. Segundo parecer do Ministério Público de Contas (MPC-SP), em 2019 as perdas estimadas com as isenções fiscais concedidas a empresas somaram R$ 24,33 bilhões. “A ajuda ao mercado é dada em detrimento das políticas públicas”, apontou a professora Élida Graziane Pinto, durante live promovida pelo Fórum das Seis em 13/8/2´020 (em breve, confira boletim de cobertura). Entre 2011 e 2019, período analisado no parecer, a queda na arrecadação soma a impressionante monta de R$ 149 bilhões.
Se as isenções fiscais fossem suspensas, portanto, teríamos recursos de sobra para suprir a suposta queda de arrecadação.
Fusões, extinção, entregas
O PL de Doria quer extinguir 10 autarquias, fundações e empresas públicas. São elas: Fundação Parque Zoológico; Fundação para o Remédio Popular (Furp); Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano de São Paulo (CDHU); Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo (EMTU); Superintendência de Controle de Endemias (Sucen); Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp); Instituto Florestal; Instituto de Medicina Social e de Criminologia (Imesc); Departamento Aeroviário do Estado de São Paulo (Daesp) e Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo (Imesc).
Os serviços destes órgãos, na maior parte dos casos, seriam assumidos por empresas privadas.
Alguma dessas empresas, como a CDHU e a EMTU, são superavitárias. Outras são reconhecidas pelos relevantes serviços sociais, como a Fundação Oncocentro, responsável por diagnóstico e tratamento de câncer e reabilitação para pessoas que tiveram sequelas causadas por tumores na região da cabeça e do pescoço. Outros bons exemplos são a Furp, laboratório farmacêutico oficial do governo do estado de São Paulo, que ocupa posição estratégica nas políticas públicas de saúde, no desenvolvimento, na produção e distribuição de medicamentos, e o Itesp, que dá assessoria para pequenos produtores rurais, para agricultura familiar e assentamentos.
Confisco no Iamspe
O PL 529 dedica um trecho à “reestruturação do sistema de contribuição” do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo (Iamspe). Atualmente, os contribuintes pagam 2%, os beneficiários (filhos e cônjuges) não pagam e os agregados (pai e mãe, padrasto e madrasta) contribuem com 2%, sem distinção por idade.
Pelo projeto, as alíquotas ficariam assim:
- usuários acima de 59 anos (titulares e agregados): 3%
- usuários abaixo de 59 anos (titulares e agregados): 2%
- dependentes acima de 59 anos: 1%
- dependentes abaixo de 59 anos: 0,5%
Não está prevista nenhuma contrapartida governamental no financiamento do Instituto, mantendo o quadro histórico de omissão do governo em seu financiamento. Segundo denúncia a Comissão Consultiva Mista (CCM) do Iamspe, o aumento das alíquotas é uma preparação para mudanças mais profundas no órgão, previstas no PLC 52/2018, que tramita na Alesp e transforma o Instituto numa autarquia de regime especial, um grande plano de saúde estadual, aberto a um maior número de usuários e com a gestão entregue às organizações sociais/iniciativa privada.
Demissão voluntária pode fragilizar mais os serviços públicos
O projeto estabelece um Programa de Demissão Incentivada (PDI), com foco em 5.660 servidores celetistas estáveis (de autarquias, universidades e secretarias), que já se aposentaram pelo INSS, mas continuam exercendo suas funções.
O desligamento destes servidores, todos com perfil de larga experiência no serviço público, pode agravar ainda mais a falta de pessoal em vários setores.
O Fórum das Seis enviou ofício ao Cruesp, solicitando uma estimativa do total de servidores que podem se enquadrar na medida, em cada universidade e no Centro Paula Souza.
As universidades e a ciência na mira
Em seu artigo 14, o PL 529 prevê a transferência do “superávit financeiro” das autarquias ao tesouro estadual. Com isso, as eventuais reservas financeiras da Unesp, USP, Unicamp e Fapesp, esta última responsável pela maior parte do financiamento público à pesquisa no estado, seriam anualmente confiscadas pelo governo. O parágrafo 1º do artigo estabelece, ainda, que “fica dispensada a deliberação dos órgãos colegiados das Universidades sobre esta transferência”.
Se aprovado o PL, já em 2020 será sequestrado das três universidades e da Fapesp um montante em torno de R$ 1 bilhão. “Uma prática desta natureza trará efeitos negativos ao ensino superior, à ciência e à tecnologia do estado de São Paulo, com consequências para o Brasil”, alerta em nota a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
“Cientistas paulistas, dentro de universidades públicas e institutos de pesquisa, com apoio da Fapesp, têm atuado de maneira enfática para lidar com os desafios dos tempos atuais incluindo a primeira identificação e sequenciamento do novo coronavírus no país, desenvolvimento e produção de respiradores de baixo custo, desenvolvimento de testes diagnósticos e de novas medidas terapêuticas, dentre muitos outros progressos”, diz a nota da SBPC, lembrando que “os fundos das universidades, de seus institutos de pesquisa e da Fapesp não constituem superávit, mas sim reservas financeiras para manutenção e para financiamento de projetos” e que o confisco poderá levar à “paralisia das universidades e da pesquisa no estado.
Os inflamados discursos em defesa da ciência, feitos pelo governador Doria nos primeiros meses da pandemia, no afã eleitoreiro de se contrapor à política obscurantista do governo federal, abrem espaço agora para um vigoroso ataque às instituições responsáveis por grande parte da pesquisa nacional.
Doria ataca autonomia, nega recursos na pandemia e ainda tenta tirar mais
Para atacar as universidades estaduais paulistas e a ciência, o governador Doria tenta passar por cima até mesmo das garantias previstas em sua autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira, vigente desde 1989 e ancorada nos preceitos da Constituição Federal
A tentativa de sequestrar as reservas das universidades, conforme previsto no PL 529, vem no momento em que, justamente, estas instituições reivindicam um aporte extra por conta da queda na arrecadação do ICMS em meio à pandemia. Unesp, Unicamp e USP são mantidas com 9,57% da quota-parte do estado no ICMS e, com a queda na atividade econômica, devem deixar de receber cerca de R$ 1 bilhão em 2020.
Embora tenha recebido recursos do governo federal, por conta do socorro aos estados e municípios, aprovado pelo Congresso para compensar a queda na arrecadação do ICMS e outros impostos/contribuições, o governo Doria tem se negado a discutir um repasse deste montante às universidades.
A pretensão, na realidade, é jogar ainda mais o ônus da crise nas costas do funcionalismo público, que vêm sendo arrochados há anos e, agora, teve seus salários congelados até dezembro/2021 e perdeu o tempo aquisitivo de quinquênios, sexta-parte e outros por igual período.