“A crise pode ter sido abafada de imediato, mas não se encerrou. Teremos que atuar com um ajuste fino entre a luta por nossas pautas e a defesa da democracia.”
A fala é do professor André Kaysel, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, durante o encontro “Ação pela Democracia – Sem anistia para os golpistas”, promovido pela ADunicamp na noite de 17/1, e que contou com a participação de 18 entidades sindicais e populares, entre elas as que integram o Fórum das Seis. O Sinteps foi representado por suas diretoras Denise Rykala e Neusa Santana Alves.
Além de Kaysel, estavam na mesa Sílvia Gatti e Edson Joaquim dos Santos, respectivamente presidenta e diretor da entidade, que destacaram os objetivos da atividade: agregar as organizações do movimento sindical, popular e da sociedade para discutir ações pela democracia.
O palestrante fez um breve balanço do momento político atual e debateu com os presentes as perspectivas e desafios do próximo período. Presente em Brasília nos dias 1º e 8 de janeiro, ele considera que testemunhou “o melhor e o pior”, “as luzes e as sombras da sociedade” em dois momentos que ficarão marcados na história do país. Nos fatos que culminaram com a depredação de prédios públicos, obras de arte e documentos oficiais, ele viu uma tentativa mal sucedida de golpe, mas avalia que o objetivo dos organizadores e financiadores nem era esse, mas sim o de deflagrar um clima de instabilidade tal que levasse a uma “intervenção” das Forças Armadas. “É importante sabermos como o dia 8 surgiu e o que esperar a partir dele na conjuntura brasileira”, disse.
Após resgatar a trama dos acontecimentos, desde a montagem dos acampamentos em frente aos quarteis sem qualquer incômodo por parte da PM e do Exército, passando pela chegada de dezenas de ônibus a Brasília na noite do dia 7, o docente destacou a ausência das forças de segurança, retiradas das ruas e dos palácios em clara facilitação aos atos bárbaros que ganharam as manchetes da imprensa do mundo todo.
Citando ainda o fato de que as portas dos palácios e do Congresso não foram quebradas e sim abertas, Kaysel enfatizou: “A cumplicidade das Forças Armadas e da PM nos atos, o que acontece mesmo nos altos comandos, mostra que o governo não controla o aparelho repressivo do Estado e isso é muito sério. Houve um avanço relativo, quando o governo Lula conseguiu colocar interventor na Segurança do DF, mas as Forças Armadas seguem como uma grande pedra no sapato. Sobre a PM ainda é possível um certo controle, mas as Forças Armadas são fator decisivo numa crise aguda, pois continuam se arrogando como ‘poder moderador’.”
Na avaliação do docente do IFCH, a relação com as Forças Armadas será um fator chave para o futuro do governo Lula e da democracia. “Se alguém achava que 2023 fosse um retorno para 2003, estava muito enganado. 2023 é outro mundo, mais interessante e esperançoso por um lado, mais perigoso por outro”, concluiu.
Anistia, governabilidade e povo na rua
Sobre a frase mais repetida nos atos pela democracia após o dia 8 – “Sem anistia!” –, o expositor defendeu a recusa a qualquer anistia aos organizadores e financiadores dos atos golpistas, inclusive aos militares que tenham sido cúmplices. “A conjuntura é a mais oportuna desde a redemocratização do país, mas obviamente requer prudência”, pontuou.
O tema esteve presente em várias das falas que se seguiram.
“Não punimos os torturadores e os que golpearam a democracia no país por mais de 20 anos. Os momentos que vivemos hoje são fruto de uma ditadura não resolvida no Brasil”, avaliou Jerry de Oliveira, da Rádio Noroeste, de Campinas.
A coordenadora do Fórum das Seis e presidenta da Adusp, Michele Schultz, lembrou que, além das Forças Armadas, que se comportam como um “quarto poder” no país, temos também um “quinto poder”: as redes sociais. “Fake news rendem mais que notícias verdadeiras”, comparou. Como perspectiva, ela apontou a mobilização popular, pelas pautas da classe trabalhadora e dos serviços públicos, como base para a defesa da democracia.
Lucas Andrade, do DCE da Unicamp, concordou. “Defender a democracia é fundamental para termos o direito de defender nossos direitos”.
Elisiene do Nascimento Lobo, do Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp (STU), ressaltou: “Não se trata de defender o governo Lula, mas sim a sociedade e os direitos da população.”
No encerramento do evento, a presidenta da ADunicamp sintetizou os caminhos apontados no debate: Organização, mobilização, defesa de direitos e da democracia, povo na rua. “É hora de sermos propositivos”, frisou Sílvia Gatti.
Filme e livro
O professor Kaysel fez duas interessantes indicações para quem deseja entender melhor o momento que o Brasil vive: - O filme “Argentina, 1985”, que conta o processo e julgamento dos ditadores argentinos, entre eles Jorge Videla, responsabilizados por tortura, mortes e desaparecimentos. A figura central é o promotor de justiça Julio Strassera, interpretado por Ricardo Darín. Um retrato emocionante de um momento central na história do país vizinho, que não passou a borracha nos crimes cometidos pela ditadura. O filme está disponível na Amazon Prime.
- O livro “Evo, operación rescate. Una trama geopolítica en 365 días”, escrito por Alfredo Serrano Mancilla, pela Editora Sudamericana, e que narra os fatos que permitiram salvar a vida do então presidente da Bolívia, Evo Morales, horas após o golpe de Estado que o depôs em 10 de novembro de 2019. Evo foi resgatado por obra do presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, que o acolheu em seu país, e pelo presidente eleito da Argentina e ainda não empossado naquele momento, Alberto Fernández. A edição em português ainda não está disponível, mas a obra pode ser adquirida em espanhol.